Invicta.Música.Filmes – Artigo

A ideia de cine-concerto pode parecer, aos olhos de muitos, uma moda iniciada na viragem deste século, mas desde o aparecimento do cinema mudo – como comprovam, entre outras fontes, relatos da imprensa sobre as projeções dos irmãos Lumière – era norma a presença de um piano ou de uma pequena orquestra a acompanhar o visionamento dos filmes. Na altura, o repertório, ou a banda sonora, se já assim lhe quisermos chamar, assentava predominantemente em obras e canções representativas dos gostos do momento. Com o tempo, a relação entre as imagens e os sons foi sendo aprimorada, quer ao nível de aspetos técnicos (como, desde logo, o sincronismo) quer do próprio encaixe da música no conteúdo semântico, estético ou emocional de cada cena.

A evolução, contínua, acabou por dotar a sétima arte de uma componente sonora incorporada, mas a experiência de assistir a um filme com música tocada em simultâneo – mesmo tendo os locais de visionamento passado de amplos teatros para salas mais pequenas, os cinemas, sem condições estruturais de receber orquestras – não ficou limitada ao domínio do estudo arqueológico, longe disso. Em termos históricos, há inclusive movimentos dedicados à reabilitação do cine-concerto, com a participação de muitos compositores, no intuito de desmontar preconceitos das novas gerações sobre o cinema mudo e de lhes permitir a descoberta de obras fundadoras – um dos casos mais emblemáticos surgiu e impôs-se na França dos anos 70.

Hoje, paralelamente às obras mudas, também os filmes sonoros, e não raras vezes os de sucesso, apoiam a caminhada do cine-concerto pelo tempo fora, sendo projetados sem som e musicados ao vivo. Enquanto objeto que liga universos artísticos tão ricos como a música e o cinema, este modelo de raiz centenária é perpetuado, à vista de todos, em instituições, espaços e programas culturais do mundo inteiro. Nascido na Casa da Música há mais de uma década, o ciclo Invicta.Música.Filmes assume o desígnio de atrair cinéfilos para a música e melómanos para o cinema, projetando ano após ano fitas de épocas e correntes distintas com acompanhamento musical in loco. Em 2024, fá-lo através de três propostas muito apelativas, uma das quais, em rigor, não representa o conceito mais convencional de cine-concerto, porque prescinde do grande ecrã. No entanto, dado estarmos a falar de uma verdadeira gala de Hollywood, poucos serão os espetadores que, ao confrontarem-se com o repertório musical interpretado pela nossa Orquestra Sinfónica, não formarão profusas imagens mentais de cada filme a que ele está associado. Alguns dos mais notáveis artífices desses sons são John Williams (Guerra das Estrelas, Parque Jurássico, A Lista de Schindler), Nino Rota (O Padrinho), Henry Mancini (Hatari!), Ennio Morricone (O Bom, o Mau e o Vilão, Era uma Vez no Oeste) ou Erich Korngold (Robin Hood). Já o Remix Ensemble retoma um clássico do cinema mudo português, O Táxi 9297 (1927), do jornalista Reinaldo Ferreira, celebrizado como Repórter X, num cine-concerto para o qual Igor C Silva criou uma imaginativa banda sonora contemporânea, em resposta a uma encomenda de 2020 da Casa da Música e da Philharmonie du Luxembourg.

A completar o programa, num evento do Serviço Educativo intitulado Vejam Bem e especialmente recomendado a famílias, são exibidos e musicados ao vivo vários filmes de animação com chancela do Centro Lúdico da Imagem Animada (Anilupa), uma valência da Associação de Ludotecas do Porto que se dedica à produção de obras criadas por crianças de escolas da região.

IGOR C SILVA SOBRE A BANDA SONORA DE “O TÁXI 9297”

Entrevista realizada em fevereiro de 2020

Ao aceitar o desafio de criar música para uma obra do cinema mudo português, Igor C Silva sabia que não iria “escrever uma partitura que os músicos seguem sem precisar de perceber o que se passa no filme”. Se a ideia era ligar a música ao cinema, a parte musical “não podia ser tratada de forma estanque”. Acresce que há 100 anos não se compunha assim para cinema mudo, o instrumentista que sonorizava a fita fazia-o improvisando, por norma em resposta ao que via. Embora ciente de que com um ensemble como o Remix “era impossível criar uma banda sonora coerente nesses moldes”, Igor quis preservar o improviso, pelo que “todos os instrumentistas têm monitores para verem o filme enquanto tocam”.

Sendo um filme de 1927, O Táxi 9297 tem uma estética da época, o que obrigou o compositor, em certos momentos, a ir ao encontro dela. “Se calhar, com a minha abordagem atual à música não conseguiria transmitir o que o filme pede, pelo desfasamento estético. Não que eu tenha recuado em termos musicais, o que fiz foi uma espécie de analogia entre tempos, tentando ligar a música à estética do filme”.

Igor não deixou também de se interessar pela figura de Reinaldo Ferreira: “Achei bizarro ele ser jornalista e, ao mesmo tempo, forjar uma série de crimes. Há histórias curiosas em Lisboa, como a de ter arrendado um quarto de hotel e levado para lá sangue de animal. Destruiu os lençóis e o quarto e, no dia seguinte, escreveu uma notícia a dizer que tinha havido ali um assassinato. As pessoas sabiam que era mentira, mas acompanhavam na mesma”. À medida que experimentava a música com o filme, este “parecia ir saltando décadas” rumo ao presente, confessa. É entusiasmante podermos agora ver o resultado.